Recentemente fui perguntada sobre como eu exergo “essa nova escola” que surge com a pandemia. Minha resposta não foi muito animadora.
Existe uma nova escola?
Com base nas respostas do poder público aos efeitos da pandemia sobre a educação, não vejo ainda uma nova escola. De fato, vejo a escola de sempre, com os velhos desafios de sempre, mas problemas novos e, dentre esses problemas, alguns podem causar mortes.
A escola não é uma instituição única. São muitas escolas espalhadas pelo nosso imenso território entre a rede pública e particular. Considerando apenas a Bahia, estado que me acolheu, segundo o Censo da Educação Básica de 2019, quase 85% das 3,5 milhões de matrículas de educação básica estão na rede pública de ensino.
Mesmo assim a escola é a mesma de sempre, com seus tempos pré-definidos, seus currículos prescritos, sua função social. Todos sabemos que a educação é indispensável para o desenvolvimento pessoal e social que tem ocorrido de forma muito desigual em nosso país, e a escola não tem como dar conta disso sozinha. Ainda assim, mesmo com todas as suas fragilidades, para uma grande parte da população, a escola ainda é um espaço de esperança de uma vida melhor.
O fechamento das escolas foi uma medida necessária para conter a pandemia, e suas consequências não são sentidas apenas no aprendizado das crianças, jovens e adultos que ficaram sem aulas, mas também na sua socialização, na construção da rotina. Uma das melhores horas da escola é o intervalo, o recreio, o momento de brincar, de conversar com os colegas e tudo isso acabou. Aquelas crianças e jovens que têm acesso a tecnologias nas suas casas, conseguem se comunicar com suas amiguinhas, fazer aulas remotas, acessar conteúdos diversos e aprender com eles. Mas as crianças e jovens que não possuem acesso facilitado a tecnologias, ficam mais restritas e essa é a realidade da população que está nas escolas públicas.
Além disso, professores e professoras foram exigidos demais nesse momento. Enquanto muitas transformaram suas casas em salas de aula improvisadas e tiveram que aprender a usar tecnologias “na marra”, outros tantos foram demitidos sumariamente sem direito a aviso prévio.
Tudo isso é preocupante, afinal, é preciso que os governos estejam atentos a isso. O sistemas de educação precisam promover verdadeiras reorganizações infraestruturais, administrativas e pedagógicas para lidar com as consequências de toda essa situação.
Vejo que as escolas no próximo ano, ainda não funcionarão completamente porque, na falta de uma vacina, muitas mães e pais não se sentirão seguros para enviar seus filhos para a escola e, ao mesmo tempo, muitas professoras e professores não poderão retornar às salas de aula, pois fazem parte dos grupos de risco. Assim, teremos uma situação híbrida que obrigará a escola a se tornar “ampliada”: funcionando presencialmente, com atendimento reduzido por questões de segurança sanitária – e funcionando remotamente com atendimento não democratizado, já que o poder público ainda não garantiu a internet como um direito de todos.
Sem contar que as consequências dessa “ampliação” híbrida das escolas já são sentidas no agora, quando observamos, por exemplo, o caso de Manaus, onde as mesmas professoras que vão para a escola receber uma parte da sua turma, continuam com atendimento remotos com a outra parte dos estudantes. Houve aumento de trabalho e perda de tempo precioso para o descanso, que já era tão pouco.
Nesse sentido, a não ser que haja um aprendizado político e investimento real nas condições das escolas dentro de suas singularidades, a não ser haja investimento na autonomia das escolas, para que estas possam se reorganizar junto com suas comunidades – apoiadas pelo poder público – teremos a escola de sempre, com problemas novos e velhos desafios.
Conheça a publicação Educação em tempos de pandemia: Reflexões sobre as implicações do isolamento físico imposto pela COVID-19 do Grupo de Pesquisa Comunicação, Educação e Tecnologias – GEC, da Faculdade de Educação da UFBA.
Mudanças impostas pela pandemia e reverberações na sala de aula
É preciso considerar que essas “transformações” foram impostas por um contexto de medo, incertezas e muitas perdas trazidas pela COVID-19. Mesmo assim, houve muita força de vontade, solidariedade e novas experimentações no campo da educação e as tecnologias possibilitaram o sucesso dessas ações. O smartfone se tornou um instrumento de apoio ao ensino e à aprendizagem.
Antes, nós enfrentávamos a proibição dos uso de celulares em sala de aula (meus colegas do GEC e eu sempre defendemos que tecnologias digitais móveis – assim como os celulares e smartfones) – poderiam e deveriam ser usadas no educar. Agora, esse uso se tornou obrigatório, e poucas pessoas estavam preparadas para isso. Então, foi o momento de explorar as potencialidades desses aparelhos e sentir suas limitações. É possível que essas experiências tenham sido angustiantes e até traumáticas para muitas pessoas, mas também, foram experiências enriquecedoras e necessárias para outras tantas. O que precisamos ter clareza como educadores e educadoras é que não podemos mais nos furtar de compreender ainda mais o poder das tecnologias nas nossas vidas e na vida de nossos aprendizes. Mesmo que muitos de nós desejemos voltar para o ensino presencial e parar de olhar nossos aprendizes pela tela do celular, esse aparelho, quando conectado a uma internet de qualidade, abre portas de aprendizagem e de experiências singulares que não cabem apenas na sala da aula.
Temos que ter clareza de que, no mundo atual – com pandemia ou sem ela – o acesso a tecnologias digitais conectadas em rede é condição para o acesso a direitos fundamentais como a comunicação e a educação. Por isso, a partir da experiência com as aulas remotas, precisamos lutar para que nossos estudantes e suas famílias tenham esse acesso ampliado. Precisamos pensar as escolas como pólos de comunicação de suas comunidades com o mundo. Precisamos que as escolas tenham redes de internet expandida e que os currículos sejam repensados, sejam vividos com tecnologias. Nós precisamos disso como nação. E precisamos disso de forma consistente, segura e feita com as escolas, fortalecendo a autonomia das unidades escolares e do seu entorno, porque a escola não é feita sozinha. A escola não é um prédio físico, cada escola é o conjunto de sua comunidade: estudantes, professoras, gestoras, servidoras, comerciantes locais, vizinhos, ex-alunos, mães e pais… a escola é tudo isso e todos são afetados pela tecnologia de alguma forma.
Na escolha de plataformas, o gratuito tem seu preço
Essa é uma discussão super importante, principalmente porque observamos uma grande adoção de plataformas educativas proprietárias de corporações estrangeiras para serem usadas com professores e estudantes, e estes se tornam reféns dos recursos e das regras desses sistemas. Aquilo que parece uma solução, a longo prazo, vira um problemão.
A escolha de aplicativos e plataformas precisa ser feita dentro de critérios técnicos, econômicos e pedagógicos. Na atualidade, em que estamos cada vez mais dependentes de tecnologias digitais, a escolha de aplicativos e de plataformas tecnológicas é uma escolha ética e política. Escolher um aplicativo apenas pela “gratuidade” pode ser algo perigoso, afinal, existe uma economia hoje baseada nas nossas informações, é o que se chama de economia de Big data. Nossas informações pessoal, rotinas, imagens, nossos gostos pessoais, tudo isso gera um conjunto de informações que já são usadas por grandes corporações tecnológicas para nos fornecer informações que direcionam nossas escolhas e comportamentos. Alguns poderão achar que isso é algo bom, mas na verdade, é uma forma de manipulação sobre o nosso modo de agir e de pensar. Isso é muito sério. Esses serviços grátis tendem a se apropriar dos nossos dados, esse é um dos preços que a gente paga pela gratuidade.
Para entender um pouco mais sobre isso, veja a resenha de Graciele Torres sobre o documentário “O dilema das redes”.
Ainda do ponto de vista econômico, quando uma escola ou até um governo compram uma solução tecnológica de grandes corporações, estão deixando de investir em desenvolvedores e empresas de tecnologia do nosso próprio país. Por isso é importante buscar a opinião de diferentes especialistas em tecnologia e em tecnologia educacional para conhecer as vantagens e as desvantagens de cada solução. Nesse ponto, a busca pela “facilidade” também precisa ser questionada. Tal tecnologia é fácil para quem? Tecnologias educacionais precisam ser acessíveis a todos, porque precisam incluir pessoas com deficiência e também pessoas com equipamentos e internet limitada. Afinal, muitas vezes, o que chamamos de facilidade é na verdade, costume e nem todo costume é bom.
As soluções de aplicativos e plataformas livres e abertos são muito interessantes porque promovem esse ecossistema produtivo, acessível e que também é educativo. Infelizmente, observamos empresas de tecnologia aqui no Brasil passando por dificuldades financeiras por falta de demanda, pois como temos o costume de usar o que nos parece fácil – como as grandes plataformas “gratuitas” das corporações estrangeiras – esquecemos que é importante olhar para o lado e conhecer o que temos à nossa volta.
Então, essa escolha precisa ser bem pensada e ao mesmo tempo, precisa ser formativa junto ao conjunto de professores, gestores e alunos. É preciso ajudar-lhes a apreender as novas plataformas e manter canais abertos de apoio técnico e pedagógico para aqueles que as utilizam. Isso pode ser feito com um grupo de profissionais da própria escola – ou da comunidade escolar – que tem mais inclinação ou facilidade com tecnologias, como também pode ser feito destinando verbas para contratar pessoas na área, ou ainda, através de parcerias entre instituições. Enquanto isso, é importante que as famílias entendam que muitas escolas estão ainda aprendendo, então, erros farão parte do processo. O apoio das famílias é fundamental nesse momento, como também é importante que a escola mantenha um canal de diálogo aberto.
Vale assistir o vídeo “Live Escolha (ser) livre: recursos e plataformas abertas para a educação”. A partir de 42min temos a fala da Marlucia Amaral sobre a escolha de software livre na gestão educacional pública.
e as práticas pedagógicas daqui para frente…
O smartfone é um dispositivo que será visto com outros olhos pedagógicos. Mas, pelo que tenho observado, ainda é preciso investir em outras linguagens potencializadas pelos artefatos digitais. Tenho observado que ainda não há o incentivo na autoria dos estudantes que poderiam, dentro de seus limites infraestruturais, serem incentivados a formar grupos para produzir conteúdos com as tecnologias que tem em mãos. Precisamos estimular a colaboração em rede entre nossos estudantes, superar as produções individualistas. Infelizmente, a internet já está cheia de exemplos de carreiras individuais em que celebridades e famosos usam das tecnologias para se tornar foco de atenção sem dar devido crédito às pessoas que trabalham junto, que fazem parte da equipe, que colaboram diretamente para que tudo dê certo. Então, precisamos construir junto com os aprendizes essa noção de que podemos e devemos cocriar, compartilhar aprendizagens e ser colaborativos através das tecnologias em rede. Ao mesmo tempo, problematizar as condições reais da vida, que segue cheia de desigualdades e contradições e as tecnologias em rede nos possibilitam ter contato com diferentes realidades as quais desconhecemos. A percepção da desigualdade como um problema social não se constrói quando estimulamos individualistas competitivos. Essa seria uma linda transformação a se levar para salas de aula desde agora, tendo em mente que o acesso à tecnologias em rede, não é um privilégio, mas uma necessidade e por isso, deve ser para todos.
Um texto excelente para debater educação escolar. Li, gostei e já estou compartilhando.
Muito agradecida, Karina Meneses, por compartilhar ⚘⚘⚘