Várias faixas com frases contra a violência e à favor da paz estão afixadas no percurso entre Barra e Ondina, um dos percursos de carnaval de Salvador. A palavra escrita tem força ao registrar esse querer que é de muitos de nós, mas não é todos, infelizmente.
Enquanto escrevo essas poucas linhas me tomam reminiscências do contrato social de Hobbes, do holocausto, de Maquiavel e me lateja na memória a imagem do homem caído no chão da avenida, de barriga pra baixo, olhos esbugalhados, braço torto para traz e palma da mão voltada para o céu, antes de ter seu rosto chutado por um outro, como se aquela cabeça ali estivesse desprendida de corpo, e como se aquele corpo estivesse desprendido de família, de passado, como se aquele corpo estivesse desprendido do humano. Ao som do afoxé, gritei, chorei. Tentei me conter, mas não consegui.
Ouvi: isso é carnaval! E senti uma dor enorme. Certamente não tão aguda quanto a dor que sentiu aquele homem, mas mesmo assim doeu em mim. Doeu a minha impotência, a minha fragilidade. Doeu o medo de viver em mundo no qual não podemos sair para dançar, para caminhar na avenida, para andar atrás do trio elétrico sem temer pela vida sendo retirada pelas mãos ou pelos pés de outra pessoa.
“Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, é o que canta Caetano. Eu concordo. Eu gosto de seguir o trio, mas agora, enquanto escrevo, desconfio do risco que se corre de morrer justamente seguindo o trio. E ontem eu vi que não seria uma morte sambante, literária como foi a morte do Vadinho, primeiro marido da Dona Flor. Seria uma morte grotesta e ordinária.
Paradoxalmente, o Trio levava um afoxé que falava de igualdade racial, de paz. Mas e daí? Não importava a cor da pele do homem ali caído. Assim como não me importava se ele estava na baderna ou se estava caçando confusão, como muitos fazem – infelizmente – no caminhar da avenida. O que me importa é que ele estava inerte, imóvel, ele estava indefeso quando seu rosto foi chutado como uma bola de futebol.
Mas eram pessoas ali, vitmas e agressores. “O homem é o lobo do homem” é o que diz Thomas Hobbes e lobos não parecem preocupados em ler palavras e ouvir músicas de paz, mesmo que elas se estendam por toda a avenida.